TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA EURO-OCIDENTAL
- Mariana Castro Teixeira
- 14 de set. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de abr. de 2021
Já pararam para pensar o porquê de estudarmos história? As respostas mais frequentes são: a história auxilia no desenvolvimento de cidadãos críticos e questionadores; ela proporciona a conscientização dos indivíduos; o estudo do passado permite entender o presente e transformá-lo; permite perceber como o mundo está diferente de antes. A maioria dos estudantes reconhece a importância da disciplina, mas acha seu estudo muito chato e sem sentido: estudo de coisas velhas e sem relação com a sua vida. Mas há aí uma contradição: como uma disciplina em que a maioria das pessoas considera tão importante pode ser tão chata assim?
Parece que a história ensinada na escola limita o lado vivo e dinâmico da disciplina e acaba por transformá-la numa história única, universal e linear, que não compreende a realidade da maioria da população brasileira, somente a de grupos da elite tradicional do país. E é sobre isso a presente aula. É interessante perceber como a história produz uma narrativa que se supõe universal e conta a história de maneira que outros grupos sociais sejam inferiorizados ou invisibilizados, pois nessa perspectiva o máximo de civilização a ser alcançada é a europeia e todo o resto estaria atrasado.
Portanto, para entender essa disciplina é necessário compreender a relação entre história e poder. A narrativa histórica, como ela é produzida e como está escrita nos livros didático, por exemplo, significa a legitimação de um discurso sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro. Contada sob determinada ótica, a história do Brasil compreende o ponto de vista das elites colonizadoras. No entanto, nós, brasileiros e brasileiras, somos de diversas origens e pertencemos a diferentes grupos sociais. Cada um desses grupo possuem uma visão própria de mundo e uma perspectiva diferente da história, sendo que a maior parte da população não é contemplada nessa narrativa geral.
A questão é que a maneira como a história vem sendo produzida muda ao longo do tempo. O livro didático de história de duas gerações atrás, por exemplo, é bem diferente do atual, principalmente no modo de narrar, de caracterizar os grupos de classe, de raça, de gênero. Muitas coisas mudaram, no entanto, ainda são necessárias muitas outras mudanças. Os povos dominados foram representados como subalternos, sempre colocados sob o domínio da hegemonia do europeu branco (cultura, hábitos, festas, pensamento, organização, padrão de beleza, de civilização). Existe uma história da escrita da história e a maior parte dessa tradição historiográfica tem como base de parâmetro os valores europeus. A maior parte da maneira como estudamos história nas escolas é eurocêntrica.
Eurocentrismo é como uma lente de se enxergar o mundo: todas as relações sociais estão impregnadas de sua influência. Essa visão de mundo e modo de se entender no mundo nasceu entre os séculos XV e XIX durante a colonização da América, África e Ásia. Na parte ocidental do mundo (não se esqueçam de que nós fomos colonizados pelos portugueses), vivemos sob a hegemonia do eurocentrismo. O eurocentrismo construiu uma epistemologia – que pode ser definido como tudo que perpassa a vida, desde valores do que é belo e feio até o entendimento da ciência e do rigor científico – sob olhar do colonizador.
Na história, isso teve implicações graves, pois a história do Brasil foi e é produzida majoritariamente pelo prisma dos portugueses, ou seja, dos dominadores, o que implicou em processos desumanização dos povos que não eram dessa origem, principalmente ao dizer que esses povos não tinham história. Para pensar em como essa epistemologia funciona, o conceito de Senhor do Ocidente defendido por Aza Djeri (2020) é valioso. A autora defende que a estrutura civilizacional imposta pela colonização produz um tipo característico de sociedade cujo devir é representado pelo personagem do Leonardo Di Caprio no filme O lobo de Wall Street: o homem branco hétero capitalista norte- americano (a mais bem sucedida colônia das Américas).
Ele é o Senhor do Ocidente e está no topo dessa construção. Essa ideia de escala é importante, pois indica a variação de acordo com as características físicas de um povo, as suas maneiras de se organizar e elaborar o mundo, formas de se relacionar com o sagrado e etc. Nessa perspectiva, o mundo e a sociedade são elaborados a partir de uma racionalidade associada a cultura europeia de forma que todo tipo de pensamento fora desse locus é negada ou inferiorizada. Para caracterizar esse processo, a filosofa Sueli Carneiro utiliza o termo epistemicídio. Veja a baixo:
E o Boaventura de Sousa Santos (2010) usa a teoria da sociologia das ausências para explicar a produção ativa do saber do outro não europeu como um não saber. Ou seja, o eurocentrismo é uma racionalidade que se propõe exclusiva frente aos saberes de outras civilizações do mundo além da europeia (e tudo o que de lá originou), que variam na escala do Senhor do Ocidente no processo de desumanização.
O século XIX produziu uma ciência com base nesse racionalismo que afirmava que a sociedade humana era dividida em raças biológicas e que os brancos seriam superiores a todas as demais, especialmente a raça negra e a indígena. Isso era expresso nos jornais, os intelectuais diziam abertamente e esse tipo de discurso cientifico justificou a colonização da África, que acontecia na época.
E foi nesse contexto que a disciplina histórica como conhecemos hoje nasceu. E apesar de todas as mudanças no sentido da crítica à maneira de se produzir conhecimento histórico, a história como disciplina (e a busca pelo seu reconhecimento como ciência) continua carregada desses basilares eurocêntricos.
Isso significa o desprezo para com a história dos povos africanos e indígenas e seus saberes ancestrais, tais como a oralidade e a corporeidade. Significa o predomínio da escrita e dos padrões de beleza branco cujas bases filosófica e religiosa são bem diferentes das tradições africanas e indígenas. Nesse sentido, todas as manifestações oriundas desses povos foram situadas na narrativa histórica de maneira estereotipada ou fora dela.
A escrita é o elemento que vai nos interessar aqui, por enquanto. Por exemplo, ela sempre foi exaltada pelos povos ocidentais e tornou-se um símbolo de civilidade. Até hoje é assim nas sociedades ocidentais influenciadas pelo colonialismo europeu. Quem hoje faz um contrato “no fio do bigode”, sem assinar papel algum? Ao longo do século XIX, essa questão da escrita tornou-se bem enfática para alguns historiadores eurocêntricos que diziam que a história começava com o surgimento da escrita (antes da escrita seria, portanto, a chamada pré-história). Por isso, os povos sem escrita foram chamados de pré-históricos. E isso é problemático na medida em que pré-histórico aqui tem uma conotação pejorativa de atrasados, incivilizados – comparados às sociedades que originaram as sociedades europeias e que supostamente teriam descoberto a escrita primeiro e seriam mais “evoluídas”.
Um símbolo forte do eurocentrismo na tradição historiográfica é a ideia da escrita como a fonte histórica mais confiável do historiador. No século XIX, um conjunto de historiadores europeus criaram uma teoria chamada positivismo que localizava as fontes escritas como as mais importantes e indefectíveis, ou seja, as fontes escritas traziam a verdade absoluta dos fatos. Hoje, o modo de se produzir conhecimento histórico mudou muito e se vale de diferentes fontes históricas como: a oral (histórias passadas de geração em geração, cantigas, entrevistas); a imagética (foto, vídeo, pinturas e outros); a cultural material (vestígios humanos do passado); e o patrimônio cultural (manifestações culturais).
A produção do conhecimento histórico depende da análise que o historiador fizer sobre a fonte histórica. Por isso, mesmo as fontes escritas não devem ser vistas como a representação da verdade em si e devem, assim como todas as demais fontes, ser submetidas aos métodos de análise.
REFERÊNCIAS
AZA, Njeri. Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. In: Revista Acadêmica Ítaca, UFRJ, n. 36 – Especial Filosofia Africana, 2020.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
SAID, Edward. Orientalismo: Oriente como invenção do Ocidente. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SANTOS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2008.
___________________. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
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