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HISTÓRIA e COVID-19

  • Foto do escritor: Mariana Castro Teixeira
    Mariana Castro Teixeira
  • 3 de mai. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 17 de dez. de 2020




A aula de hoje é sobre um aspecto da história do nosso País que está intimamente ligado com o momento de crise sanitária em que vivemos. Na verdade, o tema retratado remete não só à crise sanitária, mas à crise política e à crise da ciência. Falaremos de uma revolta popular ocorrida no Rio de Janeiro em 1904 que foi desencadeada pela maneira como o governo agiu em relação à vacinação contra a varíola e ao tratamento dispensado à população: a Revolta da Vacina. Durante uma semana em 1904, na cidade do Rio de Janeiro, milhares de pessoas saíram às ruas para enfrentar as autoridades que apoiavam o projeto que regulamentava a obrigatoriedade da vacinação antivariólica. A campanha aconteceu no governo de Rodrigues Alves e foi realizada com o auxílio do médico sanitarista Oswaldo Cruz que, com o apoio do governo, iniciou um plano de saneamento e higienização da cidade do Rio de Janeiro. Suas medidas de controle da população, no entanto, eram bem controvertidas, o que levou a população a se rebelar contra a forma como a vacina estava sendo aplicada. Vale ressaltar que essa não foi a primeira vez que o Brasil passava por um surto epidemiológico. Na verdade, desde que os portugueses iniciaram suas investidas coloniais, existem registros de epidemias. De acordo com o historiador Sidney Chalhoub, a resistência às vacinas em 1904 se insere no contexto do século XIX, ainda no período da monarquia, quando esse procedimento começava a ser testado no Brasil. Apesar de ter sido bem-sucedida por um tempo, logo as vacinas passaram a ser mal vistas em função de seus métodos dolorosos e por terem sido disseminadoras da sífilis, por exemplo. Porém, no começo do século XX, a vacina já tinha evoluído, só que a população de modo geral não tinha acesso a essas informações. O que causava muita desconfiança. Somado a isso, a divisão política da época aumentava a confusão da população. Setores da política faziam o discurso da oposição à vacina uma vez que a sua aplicação forçada e violenta agredia o direito individual do cidadão e utilizavam o argumento de que as pessoas mais fortes sobreviveriam e isto, consequentemente, levaria à imunidade total da população. Esse pensamento era validado pela ciência da época e diz respeito ao darwinismo social, as práticas eugênicas e ao racismo científico do século XIX. Já voltaremos a esse assunto. Por outro lado, existia a truculência do governo na aplicação da vacina e um desrespeito grande à população mais pobre e aos seus modos de vida. Escolhi trazer a perspectiva de Chalhoub porque ele localiza a imposição à vacinação não somente a partir da aplicação da vacina em si, mas como um novo projeto republicano de ordenação de sociedade que estava sendo disputado e imposto pelas elites. Lembrando que a República tinha sido proclamada alguns anos antes (1889) e que, desde 1891, com a ascensão política das antigas oligarquias cafeeiras (as “novas” elites políticas do país) e com a abolição da escravidão (1888), o país passava por um processo de modernização republicana. A questão que Chalhoub destaca em seu trabalho não é só o modo como a abordagem foi feita, como muitos historiadores defendem, mas ele analisa a Revolta da Vacina como uma defesa, por parte da população, dos aspectos culturais intrínsecos da sua existência. Ele diz que, por trás da vacinação compulsória, havia a imposição de um novo projeto de ordenamento social no intuito de abrir caminho para o progresso, para a civilização. E o extermínio da cultura popular era um projeto das elites políticas e econômicas da época, pois seus valores eram vistos como atrasados, um empecilho ao progresso. Essa visão de progresso e civilização das elites era baseada na ciência racista do século XIX – mesmo a escravidão já tendo sido abolida.

Essa ciência defendia os princípios da eugenia, da miscigenação e do darwinismo social. Eram explicações utilizadas para a escravização dos povos e para a construção de uma supremacia branca europeia que se colocou como centro e referência do modelo de civilização. Suas justificativas passavam pela ideia de que haveria raças biológicas e que elas estariam ordenadas segundo a lógica da inferioridade e superioridade racial. O darwinismo social usava o argumento biológico de Darwin de que as espécies mais aptas sobrevivem, porém, aplicando-o às sociedades. E as sociedades mais aptas seriam as europeias, ou seja, elas seriam as mais civilizadas.

A ciência do século XIX mudou muito em relação à ciência de hoje. No entanto, embora não seja mais aceita a ideia de raças biológicas, existe a noção de raças construída por aspectos sociais, históricos e culturais que mantém as estruturas raciais desiguais. A ideia de hierarquia racial calcada na biologia já não é mais aceita pela ciência atual, porém ainda são mantidos acordos de exclusão e/ou subalternização dos negros através das suas características negroides mais aparentes. Por isso, o racismo é estrutural e ele está presente de diferentes formas em todos os lugares atingidos pela diáspora africana. Sabemos a cor das pessoas que mais morrem no Brasil e também as que mais estão sendo atingidas atualmente com o Covid-19. Os EUA deixam nítida a segregação racial no acesso à saúde com a crise da pandemia. A situação nos países da África também é difícil. E, veja, tornou-se notória na internet a sugestão de médicos franceses em testar vacinas nos africanos, como se eles fossem cobaias.

O projeto de extermínio físico e cultural da população negra no Brasil não é de hoje, e ele se renova. A filósofa Sueli Carneiro explica o conceito do epistemicídio. São, de maneira geral, mecanismos de perpetuação das desigualdades de raça que, desde os tempos coloniais, criam distinções entre as pessoas através de categorias de superioridade e inferioridade racial.

Veja Sueli Carneiro explicando o conceito epistemicídio em dois minutos:



O racismo sempre esteve presente no Brasil. Todavia, o atual governo vem emplacando uma guerra às ciências, mas, principalmente, às ciências humanas. Vide o veto da oficialização da profissão de historiador e o corte do CNPq às bolsas de iniciação científica para a área. E não é à toa que os pensamentos eugenistas hoje estão ganhando voz e corpo e fazendo frente à própria ciência. Em declarações como “é só uma gripezinha” ou dizendo que quem tem “histórico de atleta” não manifestará sintomas da doença, está implícito o racismo do governo atual. E a ideia de limpeza étnica (eugenia) fica explícita frente à (falta de) atitude do Estado em lidar com a crise.

Átila Iamarino entrevistou Sidney Chalhoub para o seu canal no YouTube e uma das principais questões levantadas pelo historiador na live foi a de que nenhuma epidemia é puramente biológica. Esse foi o motivo que me levou a retomar as leituras de seu livro Cidade Febril e a preparar essa aula. As epidemias estão sempre vinculadas à situação social de onde acontecem, pois isso interfere na maneira como elas vão ser iniciadas, disseminadas e combatidas. E isso nos leva a pensar na importância das ciências humanas para esse momento.

Ao final da entrevista, Átila ressalta a frase de Chalhoub: “A morte é uma doença social”. E racial, pois a população que habitava os cortiços na época da Revolta da Vacina, principais focos da revolta, eram compostos por ex-escravizados que, no pós-abolição, permaneceram às margens da sociedade. Os cortiços eram espaços comunitários onde várias pessoas moravam juntas em situações precarizadas e que, mais tarde, seriam empurradas para as encostas dos morros dando origem às favelas. Por isso o extermínio da população pobre e negra fica mais evidenciado agora na forma de as elites políticas e econômicas tratarem a pandemia no Brasil. O descrédito à ciência e a propagação de notícias falsas através da internet colaboram com esse projeto.

Hoje, mais do que nunca, deve haver diálogo entre as diversas áreas do conhecimento e o campo das humanas pode colaborar traçando estratégias de combate ao vírus e criando maneiras de a população não padecer frente à falta de emprego, saúde e educação, que se agravarão pós-pandemia. Embora o governo central seja anti-ciências humanas e estejamos sem liderança para enfrentar a crise atual, os movimentos negros e sociais estão mostrando sua importância com estratégias para auxiliar as áreas mais afetadas pelo vírus.

A desinformação, a confusão, bem como a arbitrariedade e a profusão de informações falsas e descabidas são métodos de governo atuais e fazem com que o brasileiro fique perdido em relação aos cuidados e ao que fazer agora. A situação é bem complexa devido às desigualdades sociais e à falta de investimento nos aparatos estatais. No entanto, existe um protocolo de redução de danos que pode ser estabelecido para ajudar.

Essa cartilha foi feita pela Uneafro Brasil:


Tudo isso traz à reflexão a falência de um projeto educacional libertador para o Brasil. É urgente repensar a educação no País e a importância do pensamento crítico que, sob ataques da extrema direita, vem sendo acusado de promover uma educação doutrinadora. Precisamos refletir sobre qual projeto de ordenação de sociedade queremos.


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Referências

CARNEIRO, Aparecida Sueli (2005). A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Tese (doutorado) em Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. SP: Companhia das Letras, 1996.


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