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Aulas Coleção Candace

Quando se trata da história da escravidão no Brasil, alguns erros historiográficos limitam o entendimento amplo do período colonial e reforçam a construção de estereótipos negativos sobre os povos africanos. O primeiro dos erros é o silenciamento sobre a escravização indígena: assim como os povos africanos, os indígenas também foram escravizados. Ver aula Escravização Atlântica.

Outra corrupção grave da história é a explicação da escravização africana sem considerar o protagonismo dos povos africanos e culpar os próprios africanos pela tragédia do tráfico de seres humanos. Esses argumentos encontram-se em extremos opostos, mas são lados da mesma moeda: no primeiro caso, os portugueses são entendidos como sequestradores que adentraram o continente africano e raptaram aquelas pessoas, sem resistência. Ora, quando os portugueses chegaram na África eles encontraram grandes civilizações estruturadas e organizadas. Não seria possível um grupo de estrangeiros invadirem uma área e raptarem seus povos tão facilmente. Nessa perspectiva, os portugueses se passam como super-homens superiores capazes de submeter povos inteiros ao seu poder.

A segunda explicação diz que já havia escravidão na África e, por isso, os portugueses não teriam tido culpa do processo de escravização atlântica, já que a estrutura da escravidão era preexiste à presença europeia lá. Essa também não é uma leitura precisa da história, pois a escravidão que ocorria na África tradicional (antes da chegada dos europeus) era bem diferente daquela que vai ser instaurada pelas águas do Atlântico em direção às Américas.

Nesse sentido, a história da escravidão no Brasil necessita compreender a história dos povos africanos por dois grandes motivos: 1) para que seja possível entender a complexidade do tráfico de pessoas realizados entre os séculos XVI e XIX e 2) para conhecer as culturas dos povos centro-africanos que foram enviados ao Brasil e que se reinventaram nesse lado do Atlântico.

O tráfico de pessoas pelo Atlântico foi um dos episódios mais sórdidos da história brasileira, pois vieram para a América em torno de 11 milhões de africanos para serem escravizados e, destes, a metade veio só para o Brasil. Algumas interpretações errôneas da história (ou silenciamentos) deixam entrever visões do colonizador e do colonizado sob um prisma preconceituoso. Ambas imagens – tanto a dos portugueses como super-homens; como a dos africanos como seus próprios algozes – são intelectualmente desonestas, pois as relações entre centro-africanos e portugueses foram complexas e repletas de melindres que essas generalizações não alcançam.

Em 1415, Portugal iniciou o empreendimento do Périplo Africano de contornar o continente africano para chegar às Índias. O marco dessa façanha foi a chegada em Ceuta, no norte da África. A partir daí, os portugueses foram entrando em contato com toda a costa atlântica do continente africano e, ao longo dos séculos XVI e XVII, foram estabelecidas relações intensas entre eles.

Mais tarde, com o avanço da colonização portuguesa na América, essas relações seriam pautadas pela produção e venda de escravos da região central africana (dentre outras regiões da África) para a América, principalmente para o Brasil. Portanto, onde hoje compreende Angola, Congo e Zaire é um território que teve uma presença fortíssima no tráfico de escravizados para o Brasil.

 

A parte centro-oeste africana compreende o que comumente se associa à palavra bantu. Essa palavra hoje é entendida como um complexo cultural específico da parte subequatorial do continente. Banto foi o termo empregado pelos etnólogos europeus que, ao estudarem as línguas faladas no continente africano, agruparam diversas delas sob o tronco linguístico banto, pois essa seria uma família de línguas com raízes em comum. Por exemplo, todas as línguas banto empregam o radical -ntu (muntu, singular, e bantu, plural) para designar a pessoa, o ser humano (MUNANGA, 1996, p. 58).

Por isso, para compreender a complexidade das relações estabelecidas por lá é preciso antes ter noção de como essa parte do continente se organizava. A África tradicional banto e as suas instituições políticas, econômicas, religiosas/culturais se relacionaram com os portugueses, principalmente, de maneira muito intensa e foi a partir dessa relação que as estruturas africanas tradicionais foram sendo minadas e acabaram sucumbindo ao poder colonial europeu. Mas não sem antes resistir.

Quando os portugueses chegaram nessa região, em 1483, eles encontraram um grande reino estruturado e muitas riquezas oriundas dos chefes locais. Era o reino do Congo, que era o mais importante da região.

A maior parte da população se concentrava ao redor da capital, Mbanza Congo (...). Tratava-se de uma entidade política centralizada e governada por um rei escolhido entre várias linhagens reais elegíveis. Uma vez eleito, o rei detinha o poder absoluto. Ele selecionava parentes próximos de sua própria linhagem para serem seus cortesãos ou chefes de províncias. Mbanza Congo, onde se situava a corte do rei, era o centro administrativo e militar do reino. (...) Os governantes provinciais, apesar das forças militares próprias consideráveis, não tinham segurança no cargo e, durante os primeiros anos do reino, os reis concentravam força militar suficiente na capital para poder remover do cargo os representantes provinciais pretenciosos e confiscar seus bens (HEYWOOD, 2019).

Desde essa data, o reino do Congo vinha estabelecendo relações com os portugueses e em 1491 o rei e toda a liderança do reino se converteu ao catolicismo. Um desses sucessores, no entanto, se empenhou de maneira muito mais firme para uma revolução cultural no Congo. Mas essas medidas tiveram um custo trágico:

[O rei] precisou envolver-se tanto em guerras de conquista como em tráfico de escravos para financiar e sustentar o projeto (assim como os reis que sucederam a ele). Durante seu reinado, aumentou exponencialmente o número de pessoas que eram capturadas e trazidas para o reino como escravas ou que eram condenas à escravidão como punição por seus crimes. O comércio de escravos levou à expansão das guerras para a sua captura, bem como ao aumento do tráfico e da posse de escravos pela elite do reino e seus parceiros portugueses. Os reis do Congo permitiam que os portugueses se dedicassem ao tráfico de escravos no reino, enviavam escravos de presente aos reis portugueses e às vezes pediam assistência militar portuguesa para enfrentar ameaças do interior do reino ou para auxiliar nas guerras expansionistas e de captura de escravos que faziam contra Estados vizinhos, entre eles Ndongo (HEYWOOD, 2019).

 

O exemplo mais emblemático de resistência à colonização foi o reino de Ndongo, situado no norte da atual Angola e liderado por mais de três décadas pela rainha Jinga. E ela é uma personagem da história que durante muito tempo foi descrita como uma selvagem, canibal, depravada. No entanto, depois das guerras da descolonização da Angola e da guerra civil angolana, que durou de 1975 a 2002, houve um resgate da memória apagada de admiração e reverência dos africanos para com essa guerreira que muito influenciou o Brasil.

 

Esse nome Angola veio da palavra ngola, que refere-se ao título do governante de Ndongo. A população que habitava lá era conhecida como mbundu (que é grafada como ambundo) e os portugueses alcançaram essa área em 1575. A estrutura econômica, política e religiosa/cultural era caracterizada por:

A distribuição de recursos em Ndongo influía em sua estrutura política. O reino dividia-se em dezessete províncias que incorporavam 736 divisões territoriais chamadas murindas. Em algumas províncias, em especial as quatro que ficavam entre a costa e a capital em Kabasa, a densidade populacional era maior e, portanto, mais murinda. O ngola tinha o controle administrativo e fiscal mais direto sobre essas quatro províncias.

Kabasa, a cerca de 250 quilômetros da costa, era a residência oficial do ngola (...).

Vários funcionários que ajudavam o rei na corte também moravam na capital. Os mais importantes eram o tendala, o principal assessor do ngola, que ficava no comando quando o ngola estava longe da capital, e o chefe dos militares. Além deles, os principais homens de Ndongo, chamado de macotas – talvez relacionados aos chefes das dezessete províncias – também moravam na capital ou nela mantinham residências oficiais. Desse grupo faziam parte o mwene lumbo, que administrava a casa do ngola, o mwene kudya, encarregado de tributos e impostos, e o mwene misete, que mantinha os relicários dos governantes passados.

Fora da capital, os macotas tinham autoridade política, econômica e espiritual semelhante à do ngola. Desse modo, mantinham o próprio sistema de hierarquia em seus territórios e alguns deles eram bastante autônomos. Ocupavam sua posição de chefes das murindas não por terem sido enviados da capital como representantes do ngola na região, mas por alegarem ser descendentes das linhagens mais antigas que ocupavam a área. Os sobas constituíam outro grupo de funcionários importantes. Os macotas eram os eleitores e conselheiros, enquanto os sobas realizavam cotidianas de direção das aldeias. Da mesma forma que o povo aceitava o direto dos macotas de mandar por descenderem de macotas anteriores, também era esperado que a pessoa que governasse como ngola fosse um descendente legítimo de ngolas anteriores.

Os sacerdotes do lugar também realizavam rituais, como colocar crânios e outros itens sagrados na paisagem, para intimidar os inimigos. Mas as principais ferramentas militares dos soldados de Ndongo eram lanças, flechas envenenadas e machados de guerra, pelos quais eram conhecidos. Os soldados, tanto homens como mulheres, usavam os machados em combates corpo a corpo. Desde a primeira infância, eles praticavam uma dança rítmica que aumentava a velocidade e a agilidade, e possibilitava que se esquivassem das flechas venenosas de seus inimigos.

Além da força militar, o ngola exercia autoridade legal em Ndongo por meio de agentes que viajavam por todo o reino para garantir que a população obedecesse às leis. Ele impunha regulamentos rigorosos, principalmente nas transações comerciais que se davam nas grandes feiras provinciais. Os agentes tinham especial atenção para as transações relativas à venda de cativos (escravos), a fim de se certificar de que a taxa de troca das várias coisas que as pessoas usavam como dinheiro (como tecidos, conchas e sal) fosse regulada e permanecesse estável. O ngola também enviava funcionários judiciais para garantir que os sobas e os macotas cumprissem a obrigação de enviar-lhe tributos periódicos em espécie e em pessoas, e prover alimentação e hospedagem aos seus agentes. Além disso, agentes militares faziam visitas regulares às províncias para garantir o cumprimento da obrigação dos governantes locais de enviar soldados para o exército do ngola. Os exércitos do ngola agiam em todo o reino, fosse com o propósito de fazer cumprir essas políticas ou de invadir territórios vizinhos e trazer novas terras e povos para o controle de Ndongo

A posse e o comércio de escravos eram partes vitais da economia de Ndongo. Os escravos eram obtidos durante as excursões militares bem-sucedidas. Também podiam ser oriundos dos aldeões livres condenados por juízes por infrações religiosas ou desobediência civil, como traição e adultério, especialmente se este último incluísse algumas das numerosas esposas do ngola. Nesses casos de adultério, todos os membros da linhagem daquela geração em particular podiam ser condenados à escravidão. Porém, o meio mais comum de obter escravos era fazer cativos em guerras contra governantes provinciais ou reinos vizinhos. Os cativos estavam disponíveis para compra nas feiras provinciais e centrais. Esse comércio era rigorosamente regulamentado e a compra de escravos era uma operação demorada. Nas feiras de Kabasa, os agentes do ngola supervisionavam cada transação para garantir que a venda fosse legítima, numa tentativa de evitar o tráfico sem escrúpulos de kijikos. A lei de Ndongo considerava os kijikos servos, indivíduos ligados à terra, e não escravos.

Além do comércio de escravos, o ngola obtinha recursos através de um sistema de tributos pagos pelas províncias e pelas murindas. Os agentes do ngola, com suas escoltas armadas, conseguiam arrecadá-los não só porque tinham a força militar necessária, mas também porque as pessoas consideravam o ngola seu líder supremo, apesar de seus próprios líderes locais também deterem um poder considerável (HEYWOOD, 2019).

A questão da religiosidade para os bantos é atravessada por significados que muitas vezes foram corrompidos. Primeiro, é a ideia de politeísmo. Na verdade, as culturas banto acreditam em uma única divindade que teria criado o mundo, mas que se distanciou dele, sendo os ancestrais divinizados – fundadores das linhagens – os seus administradores. Por esse motivo, o deus supremo não costuma ser cultuado, ao invés, são os espíritos ancestrais que são alvo dos cultos, pois é através deles que existe comunicação entre os homens e o deus único criador de tudo que existe no mundo bantu (MUNANGA, 1995/1996, p. 62).

Essa visão de mundo compreende que existe uma força vital entre as pessoas, seres e objetos que é preciso conservar e estimular em busca da felicidade e da existência harmônica. Existe, assim, uma dinâmica de forças entre os seres, podendo torna-los mais fortes ou mais fracos dependendo das interações.

A história da rainha Jinga ocorreu por meio da sucessão de seu irmão ao trono, quando ele a enviou para uma negociação com os portugueses. Esse é um episódio símbolo da sua malícia como uma líder política e da sua grandiosidade como rainha, que se tornará a partir da morte do seu irmão.

No primeiro momento, Jinga se aproxima dos portugueses para se converter, mas não conseguiu os resultados esperados. A partir daí ela faz uma aliança com os jagas (imbangalas), que eram povos extremamente militarizados – que dariam origem aos quilombos no Brasil. Ver aula Quilombos no Brasil. Somente anos mais tarde, ela se compromete com a conversão ao catolicismo. No entanto, faz isso de forma extremamente hábil, sem nunca perder o controle do poder e por meio de alianças.

Durante seus anos mais aguerridos, quando se aliou aos imbangalas, nunca foi capturada. Criou toda uma imagem de temor para os portugueses, e, mesmo quando articulou a conversão ao cristianismo, nunca confiou nos portugueses. Se relacionou com os holandeses na época da invasão holandesa no Brasil, com o papa e com os capuchinhos italianos e espanhóis, com os reis do Congo, mas nunca sucumbiu aos portugueses.

Morreu naturalmente, e mesmo tendo se convertido, foi uma guerreira e sempre se colocou como uma rainha, herdeira legítima, por sua linhagem, do reino de Ndongo-Matamba e do povo ambundo. Sua morte revela que ela mesmo tendo convertido o reino, nunca deixou suas crenças e mistérios.

A questão cultural da diáspora ainda é pouco estudada, mas hoje já se sabe sobre a grande influência banto na cultura negra brasileira. A rainha Jinga e a ginga da capoeira são um exemplo. Além das festas tradicionais de coroação do rei do Congo e da rainha Jinga, a própria expressão gingar, usada, principalmente, na capoeira, revela uma aproximação desses mundos. Veja o vídeo abaixo:

 

REFERÊNCIAS

FONSECA, Mariana Bracks. Ginga de Angola: memórias e representações da rainha guerreira na diáspora. Tese (doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.

HEYWOOD, Linda (org.). Diáspora Negra no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2015.

HEYWOOD, Linda. Jinga de Angola: a rainha guerreira da África. 1.ed. São Paulo: Todavia, 2019.

MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. In: Revista USP. São Paulo, vol 28, p. 56-63, 1995/1996.

MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Global, 2009.

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