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Aulas Coleção Candace

O estudo sobre história antiga, normalmente, está associado às civilizações greco-romanas como berço da civilização ocidental e, consequentemente, as têm como criadoras exclusivas da civilização. Essa é uma questão importante pois está intimamente ligada à construção da centralidade europeia e da sua suposta universalidade. Para iniciarmos um processo de desconstrução dessa história branca, eurocentrada e supostamente universal, é necessário conhecer um cientista chamado Cheikh Anta Diop, que atuou na segunda metade do século XX.

Genial e desconhecido, esse estudioso multifacetado é pouquíssimo conhecido nas universidades brasileiras. Isso porque a construção da hegemonia do eurocentrismo necessitou apagar outros referenciais que contestassem a centralidade europeia. Cheikh Anta Diop foi um importante cientista senegalês, formado em várias áreas, que defendeu durante toda a sua vida a ideia de que a civilização surgiu no continente africano. Em decorrência de suas ideias, foi deslegitimado pela academia.

Conhecer esse cientista abre portas para pensar uma educação antirracista em seu âmago, já que os estudos de Diop remetem ao surgimento dos primeiros hominídeos e de como eles surgiram na África e, a partir de lá, foram se espalhando pelo mundo. Ele diz que a espécie à qual pertencemos surgiu aproximadamente há 200 mil anos na África e, por volta de 160 mil anos atrás, iniciou sua dispersão pelos outros continentes.

A questão que Cheikh Anta Diop aborda – e por isso foi tão rechaçado pelo mundo acadêmico de sua época – diz respeito à cor da pele dos primeiros ancestrais do ser humano. Para sobreviver no leste africano – Quênia, Etiópia, Tanzânia –, onde os fósseis mais antigos foram encontrados, os hominídeos dependiam da pigmentação da pele e, por isso, ele afirma: aqueles eram seres humanos de pele negra, até que saíram da África.

De acordo com ele, o ser humano que nós conhecemos hoje percorreu um processo de seis estágios. Os representantes dos três primeiros estágios, nunca saíram da África. No entanto, os outros três, sim. Os representantes dos quarto e quinto estágios saíram da África, mas desapareceram. E os representantes do sexto estágio somos nós.

Diop compara os crânios dos representantes da quinta e da sexta espécies e aponta suas diferenças significativas provando que a capacidade de dominação da natureza e o intelecto desenvolvido eram atributos apenas da sexta espécie. Posteriormente, ele compara os crânios de uma pessoa branca e de uma pessoa negra, ambas representantes do sexto estágio, e percebe que não existe diferenças significativas do ponto de vista das suas capacidades intelectuais – a exemplo da diferença entre a quinta e sexta espécies.

Ele defende a teoria monogenética e, nesse sentido, ele diz que todos os primeiros hominídeos eram de pele negra e que os seres brancos só foram aparecer a partir de 40 mil anos atrás durante a última glaciação que, na Europa, era muito mais frio do que hoje. Quando o homem Grimaldi sai da África 40 mil anos atrás, demora mais 20 mil anos até o surgimento do homem Cro-magnon branco na Europa. Ou seja: o primeiro ser humano da história da humanidade era negro, e foi dele que surgiu o homem branco, muitos milhares de anos depois.

A teoria monogenética apoia a visão de que a humanidade teria uma origem única, e Diop defendeu que essa origem era a África. O curioso é que apesar de a teoria monogenética ter predominado sobre a poligenética, amplamente rejeitada na academia hoje, o conhecimento da origem africana da espécie humana não é acessível às crianças e aos jovens estudantes da atualidade.

De acordo com a teoria poligenética, os diferentes tipos humanos teriam surgido ao mesmo tempo em diferentes lugares do mundo. O maior problema dessa interpretação é que ela facilitou o aparecimento de hierarquizações dos diferentes povos e a noção de raça biológica. Essa teoria diz que, se três raças têm origens diferentes, portanto uma deve ser melhor do que a outra.

Essa teoria foi usada para justificar que o desenvolvimento intelectual das três raças era diferente e, por isso, os povos podiam ser hierarquizados. A teoria poligenética defende que existe diferença intelectual entre as raças e essa foi uma justificativa enfática para o roubo epistemológico que começou lá atrás, com os gregos, e que se consolidou no século XIX, com a ideia de que a Grécia antiga criou a filosofia através do milagre grego. Já retomamos esse assunto, mas antes é preciso entender como essa ideia da teoria poligenética conseguiu perdurar por tanto tempo.

Diop explica que, em 1912, um geólogo fabricou um falso fóssil (Homem de Pitdown) para legitimar a teoria poligenética de que houve origem humana na Inglaterra. Somente em 1955, quase 40 anos depois, um outro estudioso descobriu que o fóssil era falso. Mas aí o estrago já estava feito. Tudo isso culminou na dificuldade que existe hoje em divulgar o conhecimento verdadeiro de que no Egito antigo as pessoas e todos os faraós e suas famílias eram negros, bem como as pessoas do resto do continente africano.

O Egito antigo sempre foi visto com muita admiração por todos, pois ele possui uma história muito esplendorosa de fato. Mas o que não se aprende nas escolas é que as construções monumentais dos faraós, bem como toda a sabedoria desenvolvida lá, foram feitas por pessoas negras. Cheikh Anta Diop nos mostra diversas evidências de como a história se distanciou dessa representação. Mesmo os gregos, no final do Império Egípcio, se referiam aos egípcios como negros. Ou seja: do início ao fim do Império Egípcio, as pessoas eram consideradas negras. Desde o século IV a.E.C. até o século V d.E.C.

O interesse europeu pelo Egito antigo reacendeu no século XIX quando uma expedição de Napoleão Bonaparte, na época das invasões francesas, descobriu as grandes relíquias escondidas da civilização egípcia. Houve muitos saques, mas o principal deles foi o roubo epistemológico. O problema é que esse interesse pelo Egito apareceu entre estudiosos europeus e, a partir daí, desenvolveu-se um campo de pesquisas do Egito antigo, a egiptologia, que favoreceu a construção de uma história eurocêntrica, ou seja, branca.

Um entre vários exemplos que existem de falsificação é a questão do nariz da Esfinge. No fim do século XIX, Diop descreve uma imagem retratando a missão francesa de Napoleão medindo a Esfinge. Nessa imagem, seu nariz já está partido. No entanto, mesmo a parte que restou, na época da fotografia, era maior do que como está atualmente. E o pedaço da ponta do nariz da Esfinge está no Museu Britânico, que se recusa a devolvê-lo ao Egito, pois sabem que, se compararem, terão evidência das características negroides dos egípcios antigos, que vêm sendo sistematicamente apagadas para manter a ideia do embranquecimento do Egito antigo.

Essa visão branca do Egito foi construída como se ele fizesse parte de uma civilização do Mediterrâneo, e não de uma civilização africana como de fato é. No século XIX, a Europa estava colonizando o continente africano. Foi o momento em que mais africanos foram escravizados e enviados para a América. Como conceber que a grandiosa civilização egípcia fosse parte do continente africano – considerado incivilizado e bárbaro pelos europeus colonizadores? Como admitir que aqueles povos que os europeus escravizavam e tratavam como objetos pudessem construir uma sociedade tão poderosa como a do Egito antigo?

A estratégia utilizada foi associar o Egito ao norte da África – região acima do deserto do Saara. De acordo com essa visão, as civilizações sub-saarianas (localizadas abaixo do deserto do Saara) continuariam selvagens e, portanto, precisariam ser “salvas” através da escravidão. Foi um roubo epistemológico. Crime que teve e tem muito impacto na nossa educação: por exemplo, até hoje poucas pessoas localizam o Egito “de primeira” no continente africano. A Cleópatra, assim como demais personagens históricos do Egito antigo, são sempre representados por pessoas brancas. E não era assim naquela época no Egito. Hoje, a sociedade egípcia passou por muitos processos de hibridização (assim como nós), mas continua sendo um povo não-branco e de tradição negra-africana.

Elisabeth Taylor em Cleópatra, 1963

 

Os estudiosos, para justificarem a supremacia greco-romana e a origem grega da filosofia, construíram a teoria do milagre grego, que dizia que os gregos teriam passado da crença nos mitos à construção do pensamento racional (geometria, filosofia, medicina, arquitetura, navegação, astronomia) através de um milagre, sem reconhecer as influências de outros povos, principalmente a dos egípcios, com quem eles tinham muito contato, especialmente a partir da invasão da Pérsia e de Alexandre o Grande.

Claro que a humanidade obteve ganhos com a civilização grega. No entanto, muito do conhecimento da Grécia antiga era oriundo de estudiosos muito mais antigos: os egípcios. Inclusive existem relatos gregos que comprovam a admiração e curiosidade dos gregos pela cultura e sabedoria do Egito antigo. George James (JAMES, 2012) tem uma pesquisa importante e igualmente pouco conhecida sobre como os grandes filósofos gregos que conhecemos hoje aprenderam sobre os mistérios do Egito antigo – que daria base para a construção da filosofia moderna.

A percepção histórica que privilegia os referenciais greco-romanos como marco para o surgimento da civilização corresponde a uma atitude eurocentrada e universalista que apagou as influências negras africanas no Egito antigo e criou a explicação do milagre grego. É como se os gregos fossem povos superiores que, a partir de um milagre, tivessem passado do entendimento mítico para o entendimento racional de mundo. Como se os gregos fossem “super-povos”.

Obviamente os gregos deixaram heranças para a humanidade, mas há um destaque para a cultura grega como pioneira de diversas áreas, especialmente da filosofia, que não é verdade. Isso porque a explicação para o surgimento do Pensamento Racional a partir de um milagre é um tanto quanto suspeita.

Essa visão, que também influenciou e influencia os estudos da antiguidade, não compreende que anos antes dos gregos, os egípcios já haviam desenvolvido muito conhecimento que seria largamente utilizado pelos povos da antiguidade. E que houve um roubo da história, um assassinato de epistemologias e apagamentos das filosofias ancestrais africanas ao longo dos séculos persistindo até a atualidade.

Uma filósofa brasileira contemporânea que pesquisa o Antigo Egito e tem sido bastante atuante na disseminação de histórias roubadas é a Katiuscia Ribeiro, ela foi orientanda de Renato Nogueira no mestrado e segue como doutoranda com pesquisa sobre Filosofia Kemética. Também Eduardo David Oliveira é um dos estudiosos pioneiros no Brasil a respeito da Filosofia Africana.

 

Abaixo seguem algumas ilustrações realizadas por alunos e alunas da 1ª série do Ensino Médio da escola pública após terem aula sobre o Egito Antigo na perspectiva negro-africana, em 2019. Porque representatividade importa, sim!

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